Prefácio de Carlos Fiolhais ao livro "Toda a Ciência (menos as partes chatas)", dos Cientistas de Pé, que acaba de ser publicado pela Gradiva:
O romancista Arthur Koestler, de origem húngara mas fixado na Grã-Bretanha, escreveu em 1964 um
livro notável sobre a criatividade no humor, na ciência
e na arte — The Act of Creation — em que analisou as
ligações profundas entre o cómico e a ciência, por um
lado, e a literatura, por outro. A sua tese pode resumir-
-se na seguinte citação:
O padrão lógico do processo criativo é o mesmo nos
três casos: consiste na descoberta de semelhanças escondidas.
Mas o clima emocional é diferente [...]: o símile cómico
tem um toque de agressividade; o raciocínio por analogia
do cientista é emocionalmente desligado, i.e., neutro; a
imagem poética é compreensiva ou admirativa, inspirada
por uma espécie positiva de emoção.
Em qualquer dos casos, existe aquilo a que ele chamou
«bissociação», uma ponte inesperada entre dois
quadros de referência aparentemente incompatíveis.
Numa anedota, há um efeito de surpresa, conseguido
em regra por um final surpreendente, um punch, tal
como na descoberta científica há um momento de
eureca, quando se unem dois quadros conceptuais que
se julgavam distintos, tal como na arte há uma visão
amplificadora, conseguida, por exemplo, com uma
metáfora, que permite a justaposição de duas visões
antes independentes.
O ensaio de Koestler, que foi, além de escritor de
ficção, um grande divulgador de ciência (o seu The
Sleepwalkers: A History of Man’s Changing Vision of
the Universe, de 1959 é um clássico da divulgação da
astronomia), insere-se em toda uma tradição filosófica
de uma teorização do humor, de uma tentativa de fazer
uma «filosofia do humor», que poderá remontar a
Aristóteles («o riso pertence à categoria do horrível,
vem de algo feio mas que não causa dor nem desastre,
como a máscara cómica que é grotesca mas não dolorosa
»), que passa seguramente por Kant («o riso é a
afectação que surge da transformação súbita de uma
expectativa tensa em coisa nenhuma») e por Schopenhauer
(«dois ou mais objectos são pensados usando
um conceito, tornando-se manifesto da enorme diferença
entre eles que esse conceito só se pode aplicar com uma
visão unilateral»), para chegar até Wittgenstein («uma
obra filosófica séria e de qualidade pode consistir inteiramente
em anedotas»).
A ligação entre humor e ciência pode-se também
estabelecer no domínio linguístico. Na língua alemã, a
língua de Kant, Schopenhauer e Wittgenstein, Witz (dito
humorístico, piada, anedota) tem uma raiz que é, afinal,
a mesma de Wissen (saber) e Wissenschaft (ciência).
No alemão antigo, a palavra Witze significava, para além de humor, inteligência, compreensão e sabedoria.
O humor é, portanto, uma forma de inteligência.
O escritor e filósofo setecentista alemão Gotthold
Ephraim Lessing afirmou que «die schoenen Wissenschaften
and freyen Kuenste das Reich des Witzes
ausmachen» («as belas ciências e as artes livres compõem
o reino do humor»).
Talvez David Marçal e a sua trupe de Cientistas de Pé
tenham lido Koestler, ou, remontando no tempo, Aristóteles,
Kant, Schopenhauer e Wittgenstein. Talvez dominem
as subtilezas da etimologia da língua germânica. Ou
talvez não. Mas o certo é que a presente colecção de
escritos de humor, com base em temas científicos, abona
a tese de Koestler e dá razão a Lessing. Um elemento de
surpresa está omnipresente na comédia, tal como na ciência
e nas artes. E, neste livro, há uma surpresa para além
das surpresas, uma metassurpresa, já que os autores usam
na sua escrita humorística ingredientes de ciência, um
domínio geralmente considerado sério, muito sério, desmesuradamente
sério. E a conclusão não pode deixar de ser
a mesma de Lessing: as ciências e as artes são parte do
reino do humor.
Com esta obra, além de ficarmos a saber mais sobre
alguns aspectos das multifacetadas ciências modernas,
as ciências que tão fortemente moldam o mundo de
hoje, ficamos também com uma imagem mais verdadeira
da ciência e dos cientistas. Estes são capazes de
não se levar demasiado a sério. Tal como estes Cientistas
de Pé, os melhores cientistas são capazes do melhor
humor. Uma das anedotas de ciência mais engraçadas
que conheço é aquela em que alguém pede a Einstein
para fazer uma conta simples, passível de ser feita
mentalmente por um físico laureado com o Nobel, este dá uma resposta surpreendente: «Julgam que sou
algum Einstein?»
O grupo dos Cientistas de Pé foi das iniciativas mais
originais que surgiram na cultura científica em Portugal
nos últimos anos. Tal como as numerosas pessoas
que viram os seus espectáculos, ri-me muito. Com a
publicação de Toda a Ciência (menos as partes chatas),
a sua criatividade chegará mais longe. Muito mais gente
se vai rir. Tenho a certeza de que, como a audiência dos
seus espectáculos, os leitores inteligentes se vão sentir
ainda mais inteligentes no fim da leitura.
Carlos Fiolhais